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Foi divulgada com exclusividade, na semana passada, pela jornalista Miriam Leitão, em sua coluna do jornal “O Globo” (1), a existência de mais de 10 mil horas de áudios realizados nos autos dos processos militares, relatando não somente a descrição explícita da prática de tortura, de forma recorrente, pelos agentes do Estado brasileiro durante o período da ditadura militar (1964-1985), como o conhecimento, claro e explícito, dessas práticas pelos ministros do Superior Tribunal Militar.
A importância desse trabalho, realizado juntamente com o pesquisador e titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor Carlos Fico, ao escancarar a prática da tortura, primeiramente, confirma o que já sabíamos: a ditadura militar foi o período mais vergonhoso e sombrio da nossa história! Torturas e sevícias, físicas e psicológicas, das mais requintadas, utilização de animais e aborto provocado por choques elétricos no aparelho genital foram alguns dos relatos descritos nos áudios evidenciando tal infâmia.
Um segundo aspecto diz respeito à memória seletiva, ou melhor, voluntariamente escondida. Os registros das conversas entre militares de alta patente e juízes nos autos dos processos, referentes ao período da ditadura militar, foram propositalmente encobertos pelo Estado por mais de cinco décadas. Evidenciando, dessa forma, uma construção histórica do nosso passado voluntariamente camuflada, oculta e obtusa.
Primo Levi, em Se questo è um uomo, retrata o período em que viveu no Lager (campo de concentração) e o fulgente desejo dos nazistas não somente da eliminação individual de cada judeu, mas de camuflar, apagar, ocultar e esconder do referido momento histórico qualquer traço de memória das barbaridades cometidas (2). A memória de um povo é o repositório do ser social, do coletivo, dos passos que o gênero humano dá, formando sua identidade e o seu legado para posteriores gerações (3).
O dia de 25 abril, na Itália, é o dia da Resistência contra o nazifascismo. Em que, de norte a sul, o povo italiano realiza uma série de manifestações lembrando o 25 de abril de 1945 que marcou a reconquista da liberdade na Itália. Recordar as atrocidades da guerra, os atos de resistência e a sua liberação final do nazifascismo é extremamente importante para “elevar a imagem e a recuperar a nossa identidade”, como discorreu nos últimos dias o presidente Sergio Matarella em cadeia nacional (4). Foi em nome desta Itália, prosseguiu, que Alcide De Gasperi (5) apresentou-se de cabeça erguida na Conferência de Paz em Paris. “Essa redenção, o sangue derramado, a preservação da nossa memória e o resgate do orgulho nacional é o que celebramos hoje”.
Conhecer o passado é fundamental para espelhar o presente e visualizar o futuro. Ocultar vozes, as atrocidades cometidas e (pior!) o conhecimento por parte de juízes, generais e ministros da existência do cometimento de torturas abomináveis pelos agentes do Estado a cidadãos brasileiros representa ocultar a nossa memória, a nossa própria identidade como sociedade, nosso legado, nossa história, impedindo, assim, a busca da construção de uma nova história e de uma sociedade mais justa.
*Anita Mattes é professora na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, doutora pela Université Paris-Sanclay, mestre pela Université Panthén-Sorbone, conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e advogada do Studio MATTES
(1) https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/audios-do-superior-tribunal-militar-provam-tortura-na-ditadura.html
(2) Vide artigo de A. MATTES e I. DUCATTI, “A Basílica de Sacré Coeur inscrita como monumento histórico francês . Seria um insulto a Le temps des cerises? Qual o valor da memória-histórica de um povo?”, publicado no site do IBDCult em 30 de junho de 2021.
(3) DUCATTI, I. Para além de um armazém antropológico: patrimônio material e imaterial como fontes de estudos e de pesquisas históricas, a partir de museus históricos, in
(4)https://www.ansa.it/sito/notizie/cronaca/2022/04/25/festa-della-liberazione-perche-si-celebra-il-25-aprile_917a1184-9107-4051-95a9-bba2c13e84e2.html
(5) Presidente do Conselho italiano em 1946.
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