Desenvolver o tema “a proteção dos direitos culturais no Brasil” pressupõe, em primeiro lugar, entender as expressões substanciais que o compõem: “direitos culturais” e “proteção”. Isso é muito importante porque, relativamente à expressão direitos culturais, a maioria da doutrina italiana praticamente os equipara ao patrimônio cultural, a francesa aos serviços públicos culturais, perspectivas que são diferentes do que fazem os espanhóis e os portugueses, com a ideia de direito da cultura, e os brasileiros, com os direitos culturais, entendendo-os como recortes do universo da cultura correspondentes permissões, proibições ou obrigações.
No meu caso específico, faz muitos anos que tento extrair da Constituição de 1988, na qual consta o comando de que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais”, os elementos componentes de uma definição de tais direitos.
Uso, para tanto, uma plêiade de métodos, partindo dos mais simples, como a literalidade constitucional, passando por ações dedutivas, chegando à interpretação sistêmica, dada a distribuição da temática ao longo de todo o corpo constitucional.
O resultado mais recente deste processo consta na 2ª edição do meu livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades”, recentemente também lançada em espanhol, apontado para uma definição de direitos culturais composta de 9 elementos distribuídos em conjuntos trinários, a saber:
. Três elementos identificadores de macroconteúdos, correspondentes às relações jurídicas sobre artes, memórias coletivas e fluxos de saberes, pois toda disciplina jurídica somente merece esse nome se tiver matérias que lhes sejam específicas;
. Três finalidades sintéticas, extraídas mais diretamente da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, porém, também presentes na Constituição brasileira, que são semear a paz, promover o desenvolvimento e assegurar a dignidade humana; e os
. Três momentos temporais – passado, presente e futuro – por dois motivos principais: o primeiro é que só sabemos se temos mais ou menos paz, desenvolvimento e dignidade, se observarmos todos os momentos da existência; o outro motivo é mais pragmático, que é o de velar pela cultura do modo como ela ocorreu no passado, fazê-la no presente e estimar seus impactos futuros.
É por isso que na obra mencionada digo que “direitos culturais são aqueles relacionados às artes, à memória coletiva e ao fluxo dos saberes que asseguram a seus titulares o conhecimento e honesto uso do passado, interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão referentes ao futuro, visando sempre, relativamente à pessoa humana, a dignidade, o desenvolvimento e a paz”.
Quanto à proteção dos direitos que podem ser subsumidos neste considerável espectro, numa espécie de metonímia legal, a Constituição brasileira determina que o poder público, com a colaboração da comunidade promoverá e protegerá o patrimônio cultural, que não é mais apenas o da nação, mas dos diferentes grupos que a formam.
Nação, grupos e comunidades são, portanto, responsáveis pela proteção do patrimônio cultural que lhes diz respeito, e ao mesmo tempo devedores de respeito aos demais patrimônios. Outros personagens também o são, começando pelo cidadão, considerado como aquela pessoa com capacidade de votar, que é parte legítima para propor ação judicial, adequadamente designada de ação popular, em defesa preventiva ou reparadora das agressões ao patrimônio cultural.
Se bem observada a ideia de proteção dos direitos culturais na Constituição brasileira, ela muito se aproxima e quase se confunde com a de salvaguarda, constante na Convenção da Unesco sobre o Patrimônio cultural imaterial, segundo a qual “entende-se por ‘salvaguarda’ as medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não-formal - e revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos”.
De fato, as “medidas” a que se refere a definição mencionada correspondem, na linguagem jurídica, a garantias, que são todos os elementos colocados ao dispor da efetivação dos direitos, no caso desta reflexão, os adjetivados como culturais.
Cumprida essa fase das definições, convém lembrar que o texto constitucional brasileiro prevê direitos culturais de distintas categorias, correspondendo às liberdades culturais, às prestações estatais e aos valores metaindividuais e até supraestatais, classificação esta que passa a ser tomada como base para a demandada avaliação relativa à proteção dos mencionados direitos.
A ideia de direitos culturais como supra estatais emana do artigo que inaugura a seção especificamente dedicada à cultura na Constituição brasileira, cuja primeira parte estabelece que, como já visto, “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais”, frase em que a palavra “todos” evidencia a natureza de direitos humanos dos direitos culturais, algo que fica ainda mais claro quando lembramos que no enunciado geral dos direitos fundamentais, constante do artigo 5º, os direitos nele especificados são assegurados aos “brasileiros e aos estrangeiros residentes”.
A regra geral de que os direitos culturais devem ser garantidos a todos os seres humanos é uma importante porta de superação do estado nacional e, neste particular, o Brasil não está só: o México, por exemplo, admite a constitucionalidade de lei produzida em sua capital, que consagra dos direitos culturais “aos habitantes e aos visitantes da Cidade do México”, significando que goza dos direitos culturais reconhecidos não apenas os nacionais, mas quem esteja sob a jurisdição do mencionado ente político.
Sobre as liberdades culturais, a disciplina mais abrangente relativamente a elas consta do Art. 5º, IX, da Constituição, segundo o qual “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Esse conjunto de liberdades, com o crescimento e ascensão do conservadorismo ao poder nas distintas instâncias federativas do Brasil, vem sendo colocado à prova diuturnamente: mesmo sem competência legislativa, Estados e Municípios criam leis para proibir peças de teatro, filmes e exposições com conteúdo que consideram censuráveis, chegando ao ponto de atribuir poderes a autoridades policiais para interromper as apresentações ou exibições.
Quando essas leis são declaradas inconstitucionais (ainda há juízes em Berlim, quer dizer, no Brasil!), adotam atitudes administrativas consistentes em negar espaços para apresentações, indeferir projetos, “criar filtros”, contingenciar recursos, intentar processos judiciais, fazer ameaças de violência, realizar obstrução física a partir de ação de militantes, dentre outros.
Por fim, há uma dimensão prestacional, cuja síntese pode ser extraída da combinação de alguns preceitos constitucionais, como o que “o Estado garantirá a todos o ... acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (parte final do Art. 215) e “a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais” (Art. 216, § 3º).
Ora, para o Estado fazer o que a Constituição ordena, o mínimo que se espera é que tenha a estrutura administrativa, os recursos e o planejamento adequados, três elementos que desafortunadamente exibem um quadro preocupante.
A estrutura administrativa conta com instituições centenárias, como a Biblioteca Nacional, ou quase nonagenária, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que não ficaram imunes à guerra cultural: foram esvaziadas de suas funções, seja pelo direcionamento político a elas conferido, seja pela supressão de recursos para as atividades que devem desenvolver.
A instituição de coordenação das políticas culturais, o Ministério da Cultura, criado em 1985, desde então já foi rebaixado para o segundo escalão do governo, passando a ser uma Secretaria, por três vezes.
O mais recente rebaixamento não foi apenas de nível administrativo, mas da própria dignidade do órgão e do setor a que deveria servir, ficando à deriva na estrutura pública, sendo conduzidos por gestores desastrosos, um dos quais, para divulgar a sua suposta linha de ação, teve o desplante de fazer uma pantomima de um discurso de Joseph Goebbels, o ministro da comunicação de Hitler.
No âmbito dos Estados e dos Municípios, movimentos semelhantes, de criação, rebaixamento e extinção de secretarias de cultura são ainda mais frequentes.
A ausência de recursos financeiros para o setor é um problema renitente para o qual nunca se encontrou solução aceitável no Brasil. Apesar de muitas tentativas, nunca se logrou aprovar a autorização constitucional de vincular pelo menos 1% do orçamento público para as atividades culturais, tal qual recomenda a Unesco. Nas crises financeiras, o setor que por primeiro e mais drasticamente sofre contingenciamentos é o cultural.
Neste tema, porém, algo de excepcional aconteceu durante a pandemia, não por deliberação do Poder Executivo, mas do Poder Legislativo, que numa ação suprapartidária conseguiu aprovar R$ 3 bilhões para o setor cultural (aproximadamente € 540 milhões), que foram disponibilizados a todos os Estados e Municípios, com rateio proporcional à população e aos fundos de participação no produto das arrecadações existentes no federalismo cooperativista brasileiro.
O planejamento no setor cultural é outro motivo de preocupação, gerada por causas como a própria indefinição do universo de competência dos órgãos culturais, a ausência de dados sobre atividades, estruturas e pessoal. Para tentar combater esse problema, uma emenda constitucional determinou a criação de planos plurianuais de cultura, em todos os entes da federação brasileira. O Plano Nacional de Cultura, por exemplo, foi criado em 2010 para ser decenal, mas foi prorrogado por mais quatro anos, não propriamente para que houvesse tempo de realizar as suas 52 metas, mas simplesmente para cumprir a formalidade de ter um plano, porque isso é determinado pela Constituição.
Conclusivamente, metaforizando a situação do setor cultural no Brasil, cabe a designação de Jesús Prieto de Pedro que, quando a eles se refere, os chama de filhos pródigos dos direitos humanos. E nos últimos quatro anos, poderiam ser chamados de filhos renegados, dada a forma como foram maltratados, lembrando a figura bélica da terra arrasada ou, quando menos, da cidade drasticamente bombardeada.
Um novo governo foi recentemente eleito no Brasil, o qual tem histórico de sensibilidade no campo cultural, e que aparece com propostas importantes, como a recriação do Ministério da Cultura e a criação específica de um Ministério dos Povos Originários.
Nesta nova oportunidade, para que o setor cultural retome o mais rapidamente possível o protagonismo que lhe é próprio, bem como para evitar que no futuro não retorne mais uma vez ao marco zero ou às suas proximidades, mais que sensibilidade, são necessárias ações efetivas, preferencialmente as que envolvam a sociedade em seus diversos grupos componentes, mas também em seu conjunto, atuando no fortalecimento de valores comuns, pois qualquer setor de um estado democrático de direito só tem possibilidade de subsistência e desenvolvimento se suas ações ecoarem no seio social.
*Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de Graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais, Comentarista do Instituto Observatório do Direito Autoral – IODA. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP).
*Esse texto, em sua versão para o inglês, serviu de base para palestra proferida pelo autor no Seminário “Human Rights and Cultural Rights: a Comparative Perespective”, ocorrido em novembro de 2022, em Roma, numa realização da Unitelma Sapienza e sua Cátedra UNESCO.
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