Foto de Fernando Braga
A pandemia do novo Coronavírus que inicialmente surgiu como um surto em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, anunciada pela Organização Mundial de Saúde – OMS, provocou ações em todo o mundo, visando amenizar os impactos à saúde das pessoas (1). Entre essas ações, muitos países, como o Brasil, aderiram ao distanciamento social, à partir de março de 2020, o que acarretou a suspensão de várias atividades que pudessem promover a aglomeração de pessoas. Assim, as atividades culturais, como a capoeira, foram suspensas.
A capoeira é uma manifestação cultural que por meio de um de seus bens imateriais, a roda de capoeira, articulada pelo mestre de capoeira e por capoeiristas, reúne pessoas para a sua materialização, na qual há uma aproximação entre os seus praticantes, através de toques corporais e do contato com objetos, tais como os instrumentos musicais. Sendo assim, a sua realização, durante esse período, colocaria a saúde de seus praticantes em risco. Diante dessa interrupção, o capoeirista, sobretudo o mestre de capoeira, precisou pensar em formas para manter as suas atividades. Entre essas formas, o uso das redes sociais foi fundamental para não interromper o fluxo dos saberes envolvidos nessa forma de expressão.
A Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira foram reconhecidos em 2008 como Patrimônio Cultural do Brasil. Esses dois bens imateriais foram registrados, respectivamente, no Livro das Formas de Expressão e no Livro dos Saberes (2). Esse reconhecimento é fruto das lutas dos capoeiristas que viajam pelo mundo divulgando essa arte afro-brasileira, presente em espaços formais e não formais, colaborando na formação das pessoas por meio de ensinamentos de respeito e tolerância à diversidade, com fundamento na ancestralidade.
Depois do registro como patrimônio cultural pelo Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, iniciou-se um diálogo entre o instituto e os capoeiristas em vários estados, a partir das superintendências estaduais. Assim, ampliou-se a participação popular no desenvolvimento de ações para fomentar e apoiar à Capoeira em suas peculiaridades locais. No desenvolvimento desse processo, em 2014, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco reconheceu a Roda de Capoeira como Patrimônio Cultural da Humanidade, sendo inscrita na Lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade (3).
Pode-se observar a capoeira a partir de uma perspectiva dialética, na qual sua essência é a negação do que está posto, do estabelecido. Essa negação cancela e mantém elementos da tese imposta por um pensamento homogenizador e colonizador, proporciona o movimento que sempre busca a liberdade, resiste às imposições e segue existindo (4). O fluxo de saberes, que permeia essa forma de expressão, ocorre de inúmeras maneiras e se metamorfoseia no tempo. Os aprendizados foram se modificando e se ampliando nessa linha temporal, na qual a mimética, a oitiva, a metodologia, a sistematização, o uso de VHS, vinis, K7s, CDs, DVDs, entre outros elementos materiais e imateriais foram encontrando espaço e colaborando para que os saberes chegassem a um maior número de pessoas e trafegassem no universo capoeirístico.
Essa dinâmica também leva os capoeiristas para o ciberespaço (5), lugar onde um universo oceânico de informações trafegam, englobando não apenas uma infraestrutura material, mas albergando também os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Assim, surgem cursos, compartilham-se arquivos de vídeos, áudios e textos, utiliza-se plataformas como YouTube e Spotify, entre outros, no fito de favorecer o aprendizado. No entanto, essas formas autônomas e coletivas sempre são criticadas por medo do novo, por medo da perda das tradições, ou ainda, por medo do virtual que evoca, muitas vezes, uma dimensão ilusória, a ausência de existência, em oposição ao real, desconsiderando que o virtual existe em potência.
A Roda de Capoeira se realiza entre o agora e o passado, em movimento para o futuro. Mantém um link com os ancestrais, convidando-os a estarem presentes espiritualmente, virtualmente (em potência), simbolicamente, convocando os capoeiristas à luta. Nesse espaço que manifesta a cultura, seus praticantes se deslocam no tempo e no espaço, por meio da oralidade expressa nas cantigas e por meio da gestualidade expressa pela corporeidade, levando o capoeirista ao tempo que nunca esteve ou a um lugar que nunca visitou.
Foto de Fernando Braga
Nesse contexto de distanciamento social, muitos capoeiristas, mesmo os mais resistentes e críticos ferrenhos aos meios digitais, aderiram a plataformas locadas no ciberespaço para atender às demandas dos seus discípulos, para manter o fluxo dos saberes. Na esteira de Lévy (6), acredito que o ciberespaço, dispositivo de comunicação interativa e comunitária, apresenta-se como meio que amplia o fluxo dos saberes, como um suporte para o desenvolvimento dos capoeiristas e quiçá da capoeira e não como algo que impacta, como projétil que atinge uma vidraça e a destrói, trazendo a imagem de capoeiristas que não têm a mínima ideia do que fazem ou de que são corruptores das tradições. Ora, o corpo na capoeira é um corpo rebelde, difícil de ser docilizado, apesar das tentativas nunca terem cessado.
O ciberespaço amplia, mas não comporta a capoeira. Ela continua o seu movimento e precisa dar seguimento aos saberes e fazeres envolvidos em sua prática. Dessa forma, também precisa de suporte logístico, oriundo da ação estatal, como a Lei Aldir Blanc (7), que traz em seu bojo, explicitamente em dois de seus artigos o termo “capoeira”, quando se refere aos profissionais da cultura, citando “professores de capoeira” e quando se refere aos espaços, citando “escolas de capoeira”. Então, os mecanismos que a lei prevê, a saber, auxílio para o trabalhador da cultura, subsídios para espaços e editais de fomento, podem e devem ser acessados pelos capoeiristas.
No entanto, a descentralização dessa política requer uma atenção especial, cidadã, participativa(8), com o escopo de assegurar que esses recursos cheguem ao capoeirista, para a capoeira. Faz-se necessário, urgentemente, um trabalho andragógico, no qual as escolas de capoeira possam possibilitar uma alfabetização cidadã, que a ancestralidade traga à tona o sentimento de apropriação de direitos, de autonomia para uma construção coletiva, de igualdade e de dignidade humana a todos e a todas. Para que dessa forma, não sejamos mais divididos por um pensamento maquiavélico, para que não cedamos aos apelos do capital, no qual a competição exacerbada e desarrazoada mina a solidariedade humana, na disputa de recursos supostamente escassos.
Assim, nesse contexto de incertezas e inseguranças, espero que possamos enxergar mais claramente os aprendizados que a ancestralidade que permeia a capoeira nos traz. Sejamos Zumbi, Besouro, Dandara, Madame Satã, Maria Doze Homens, entre outros guerreiros e guerreiras que recusam o que está posto, que lutam por dias melhores. Precisamos nos aquilombar (10)!
José Olímpio Ferreira Neto
Mestre de Capoeira. Professor da Educação Básica. Advogado. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação Profissional em Ensino e Formação Docente em associação Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza – GEPDC/UNIFOR. Membro da Comissão Organizadora do Fórum da Capoeira do Ceará
(1) WUHAN, onde surgiu o novo coronavírus, é exemplo de ‘esperança’, diz OMS. 20 de março de 2020. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/mundo/wuhan-onde-surgiu-o-novo-coronavirus-e-exemplo-de-esperanca-diz-oms/>. Acessado em: 20 out. 2020.
(2) FERREIRA NETO, José Olímpio. O Princípio Jurídico-Político da Participação Popular no Reconhecimento da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil e da Humanidade. 2019. 69 f. Monografia (Graduação em Direito) – Centro de Ciências Jurídicas, Universidade de Fortaleza. Fortaleza, 2018.
(3) Idem
(4) FERREIRA NETO, José Olímpio. Capoeira, um olhar a partir da filosofia de Herbert Marcuse: a cultura e seu caráter negativo em busca da liberdade. 2011. 61 f. Monografia (Graduação em Filosofia) – Centro de Humanidades, Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, 2011.
(5) LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 2010.
(6) Idem
(7) BRASIL. Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020. Dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. D.O.U. de 30.6.2020b. Disponível em: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.017-de-29-de-junho-de-2020-264166628>. Acesso em: 20 out. 2020.
(8) CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Me engana que eu gosto. Diário do Nordeste. 18 jul. 2020. Disponível em:<https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/opiniao/colaboradores/me-engana-que-eu-gosto-1.2967758>. Acesso em: 26 out. 2020.
(9) JÚNIOR, Joselicio. É tempo de se aquilombar. 29 abr. 2019. In: Revista Forum. Disponível em: <https://revistaforum.com.br/colunistas/joseliciojunior/e-tempo-de-se-aquilombar/>. Acesso em: 07 out. 2020.
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