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A integração cultural da América Latina - um dever constitucional e um desafio para o MinC



É preciso que o Brasil – no contexto de retomar o protagonismo internacional – formule mais sobre o seu dever constitucional de integração cultural com os povos e as nações da América Latina. Isto talvez seja um desafio interessante para ser dialogado entre o Ministério da Cultura (MinC) e o Itamaraty. É preciso que o próprio MinC assuma um protagonismo para pensar políticas públicas em conjunto com outros países que possam promover circulação de artistas, trocas de experiências e saberes, valorização da memória, dentre outros.

Para o Brasil, essa associação que decorre de dever constitucional, como demonstrado mais adiante, pode ser incomum. Inobstante, é importante ressaltar brevemente o caso da Alemanha, que sempre tratou estes temas – relações internacionais e cultura – de maneira conjunta. Dessa forma, estudar políticas culturais na Alemanha envolve, necessariamente, compreender o papel dos conflitos culturais e a sua relação com outros países.

A Cultura é considerada o terceiro pilar da política internacional alemã [1], após políticas de segurança e econômicas. Nesse contexto, como instrumentos institucionais de política externa no campo da cultura, pode-se citar o “Plano de prevenção de crise civil, resolução de conflitos e o plano de consolidação da paz” [2] [tradução nossa]. Tamanha é a importância, verificamos que Norbert Elias (1997, p. 16-17) destaca que o próprio processo de formação do Estado alemão possui, entre as suas principais características, o respeito ao encontro e o conflito entre culturas [3].


Nesse sentido, não é de se estranhar que o elemento cultural, importante inclusive como elemento de coesão nacional, esteja presente nas responsabilidades do Governo Central. O art. 32 da Constituição Alemã atribui a este a competência pelas relações internacionais e em seguida inclui a ideia de política cultural externa, “sind die Bundesbehörden um das Parlament zuständig für die auswärtige Kulturpolitik”. Trago estes fatos apenas para dar dimensão deste potencial e de que não estamos “tentando inventar a roda”.


Agora, voltemos para o que proponho como desafio para o MinC. Estabelece a CRFB/88, em seu art 4º, Parágrafo único: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.” Aqui, destaco ainda a centralidade que o debate sobre a integração da América Latina deve retomar. O próprio presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, tem reforçado a ideia de retomar a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) [4] e essas falas foram reiteradas na presença do presidente da Argentina, Alberto Fernandes, de modo que a tendência natural é o debate ser focado na economia. Entretanto, eis que chamo atenção para que possamos pensar na dimensão de políticas públicas internacionais de cultura.


A Unasul surgiu em contexto de assunção de governos de esquerda e populistas na América do Sul, cujas principais marcas são o compromisso com a redução das desigualdades sociais, o fortalecimento das identidades regionais, o fomento às manifestações étnico-culturais dos diversos povos em cada país e, é claro, a ênfase em uma participação popular que revigore a débil e formalista democracia no continente [5].


Enalteça-se aqui, portanto, os estudos contidos na teoria da dependência de Celso Furtado e de Raúl Prebisch no exame crítico do processo de desenvolvimento ocorrido na América Latina, que reforçam a importância do processo de integração para esses países.


O desafio, então, é de debruçar-se sobre a integração cultural respeitando a história partilhada, as tradições, a geografia, a linguística [6], os costumes e crenças. Assim, a partir dos deveres constitucionais, compreende-se a obrigatoriedade de analisar o processo de integração regional sob a perspectiva política, social, cultural e jurídica. Trata-se de absorver os elementos constitucionais na garantia da pluralidade das identidades, sendo uma construção multiétnica que deve absorver a participação como elemento constitutivo, para fortalecer a democracia brasileira e a democracia regional.


Outrossim, os fenômenos de integração regionais mais sólidos devem observar, necessariamente, as dimensões culturais e sociais de inclusão política e de Direitos Humanos, enfrentando um modelo de globalização com caráter imperialista (MOYO, 2006) [7].

É nesse contexto que convocamos para a reflexão sobre a integração cultural na América Latina [7] como objeto de política pública. Para isto, deixo o desafio de pensarmos não apenas para o Brasil, mas em como criar políticas públicas de circulação de artistas entre os países que compõem a Unasul, as cooperações e os intercâmbios entre órgãos de defesa do patrimônio, o fomento de manifestações culturais que reforcem a identidade dos povos da América Latina. Por que não criar um “Artistas sem fronteiras" na América Latina? Ou um “Pontos de Cultura Latino-Americanos”? Independentemente de nomes e programas uma coisa é certa - a oportunidade é agora e a obrigação se faz presente desde a promulgação da Constituição Federal de 1988.


André Brayner, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor), com atuação científico-jurídica preponderante nos campos relacionados ao Direito Internacional, Direitos Culturais e Terceiro Setor, professor de Direito e Diretor do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

Notas


[1] BLUMENREICH, Ulrike. Compendium of Cultural Policies and Trends in Europe, 14th edition, Council of Europe/ERICarts, 2013, p. 12.


[2] No original: “Aktionsplan zivile Krisenprävention, Konfliktlösung und Friedenskonsolidierung”.


[3] Ao discorrer sobre um habitus alemão e peculiaridades do processo de formação do Estado alemão, destaca quatro características, dentre as quais duas dizem respeito ao encontro e conflito entre culturas:”a localização e às mudanças estruturais no povo que falou línguas germânicas e mais tarde alemão, em relação às sociedades vizinhas que falam outras línguas”;[...] “um papel central tem sido desempenhado pelas lutas de eliminação entre grupos, estejam eles integrados ao nível de tribos ou ao de Estados.” ELIAS, Norbert. Os alemães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.


[4] A união das Nações Sul-Americanas é um dos organismos de integração entre Países da América Latina que tem como propósito construir um processo de integração para além dos elementos econômicos, incorporando questões culturais, sociais e ideológicas, cujo tratado constitutivo fora assinado em 2008.

[5] BRAYNER, Andre. Direito à Integração Democrática na América do Sul: Considerações Políticas e Jurídicas sobre a UNASUL. Lumen Juris, 2018.


[6] O Tratado Constitutivo da Unasul foi feito em quatro idiomas, em português, espanhol, inglês e neerlandês, sendo todas as quatro versões igualmente originais e aceitas (art.23, Tratado Constitutivo). Observa-se, todavia, que não inovou em utilizar também manifestações linguísticas que não fossem idiomas oficiais para expressar seus intentos.


[7] MOYA, M. T. Dominguez del R. Derecho de la integración, Buenos Aires: Edjar, 2006.


[8] Para Eduardo Galeano (2003), a relação da América Latina como um todo foi sempre de exploração, subordinação e dependência com as potências “imperialistas” de cada período. Não bastasse a exploração indiscriminada dos recursos naturais e humanos, toda a produtividade é posta a serviço das demandas internacionais, desde os primeiros ciclos produtivos – açúcar, café, tabaco, algodão, etc. –, todos sob o sistema de latifúndios e monocultura sem nenhuma preocupação com as necessidades dos povos. Os índios, em um século e meio, reduziram-se de 70 milhões para 3,5 milhões. Afirma ainda que “La pobreza del hombre como resultado de La riqueza de La tierra”.

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