Desde o ano de 1970, o dia 5 de novembro é dedicado à Cultura e à Ciência, fato decorrente de uma homenagem à data de nascimento de Rui Barbosa [1], em 1849; o intelectual que, dentre outros feitos, é considerado o principal responsável pela segunda Constituição brasileira, promulgada em 24 de fevereiro de 1891.
Neste labor constituinte, a grande inspiração de Rui foi a Constituição Estadunidense redigida a mais de um século daquele momento, precisamente em 17 de setembro 1787, o que se nota pela própria designação que nosso país passou a ter, a de Estados Unidos do Brasil, mas não somente isso, dado que também adotamos o presidencialismo puro e o federalismo dual, esta forma de organização do Estado cujos impactos culturais precisam ser mais bem explicados.
No dito federalismo dual, o protagonismo das políticas internas é dos Estados, que podem transferi-las aos seus municípios, significando que o governo federal fica praticamente com as responsabilidades pelas relações internacionais, a segurança do território e a harmonização de interesses entre os entes da federação.
A fórmula jurídica para consolidar essa prática aparece, naquilo que hoje se conhece por competências comuns, economicamente enunciadas no Art. 35, ao preceituar, que “Incumbe, outrossim, ao Congresso, mas não privativamente”, dentre os temas culturais, “animar no País o desenvolvimento das letras, artes e ciências”, “criar instituições de ensino superior e secundário nos Estados” e “prover a instrução secundária no Distrito Federal” [2].
Porém, a regra de ouro da única experiência de federalismo descentralizado do Brasil, está no 2º item do Art. 65, que explicita a competência residual como nunca novamente o seria, estabelecendo que “É facultado aos Estados: em geral, todo e qualquer poder ou direito, que lhes não for negado por cláusula expressa ou implicitamente contida nas cláusulas expressas da Constituição” [3].
Políticas culturais federais, portanto, são então raras, em face dos fatores mencionados, bem como porque a Constituição de 1891, cuja vigência se prolongou por 43 anos, persistiu com o modelo econômico-liberal e era, ainda, antecessora da explicitação dos direitos culturais. Consequentemente, o foco da ação cultural recaía sobre os outros entes políticos, sendo exemplar disto o ciclo da construção dos chamados teatros-monumento, sob a responsabilidade de Estados ou Municípios, como o Teatro Amazonas, o Theatro José de Alencar (Ceará) e o Teatro Municipal de São Paulo.
Estamos tratando, portanto, de uma carta política de profundas mudanças na esfera dos poderes e da organização do Estado, que, curiosamente, em temos memoriais adota uma atitude de reconhecimento ao período pretérito quando, no Art. 7º das Disposições Transitórias, concede “a D. Pedro de Alcântara, ex-Imperador do Brasil, uma pensão que, a contar de 15 de novembro de 1889, garanta-lhe, por todo o tempo de sua vida, subsistência decente. O Congresso ordinário, em sua primeira reunião, fixará o quantum desta pensão”. O beneficiário, todavia, morreu menos de 10 meses depois, ainda no mesmo ano de adoção da nossa primeira Constituição republicana.
Se, por um lado, a Constituição de 1891, exibiu gratidão ao monarca mantenedor da unidade do país, reverenciou também aquele que é considerado o maior responsável pela implantação da República em terra brasileira: no Art. 8º do mesmo Ato normativo de transição constitucional, deliberou que “O Governo federal adquirirá para a Nação a casa em que faleceu o Doutor Benjamin Constant Botelho de Magalhães e nela mandará colocar uma lápide em homenagem à memória do grande patriota - o fundador da República”, adindo, no parágrafo único, que a viúva do homenageado “terá, enquanto viver, o usufruto da casa mencionada”.
Mais do que um preito de gratidão, o dispositivo transcrito contém os elementos que décadas a fio norteariam a ideia de patrimônio cultural, no Brasil: a casa, representado a chamada política de pedra e cal; e a figura pública consagrada pelo status quo e pela história oficial, preceitos que somente serão juridicamente abalados com a futura Constituição de 1988.
A carta de direitos da Constituição de 1891 consta essencialmente no Art.72, pelo qual “assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade”.
Em termos de liberdades, a Carta de Rui assegura, no § 12, que “em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato”. Por seu turno, ao explicitar as liberdades laborais, as de natureza cultural foram expressamente mencionadas no contexto das que constam no § 24: “É garantido o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial”.
No que atine aos chamados direitos intelectuais, foram tratados no bloco dos direitos de propriedade, com a particularidade de que as patentes, os direitos autorais e as marcas foram especificados em dispositivos autônomos, o que já evidencia a compreensão peculiar de cada um. Sobre as patentes, dispunha o § 25 que “Os inventos industriais pertencerão aos seus autores, aos quais ficará garantido por lei um privilégio temporário ou será concedido pelo Congresso um prêmio razoável, quando haja conveniência de vulgarizar o invento”. E quanto às marcas, o § 27 estabeleceu que “A lei assegurará a propriedade das marcas de fábrica”.
Especificamente no campo autoralista, o § 26 estabeleceu que “Aos autores de obras literárias e artísticas é garantido o direito exclusivo de reproduzi-las pela imprensa ou por qualquer outro processo mecânico. Os herdeiros dos autores gozarão desse direito pelo tempo que a lei determinar”. Salvo a omissão das obras científicas, nota-se uma proximidade redacional com a normatividade ora vigente o que, ao invés de demonstrar avanço da Constituição de 1891, provavelmente exiba o insuficiente desenvolvimento da matéria na Carta de 1988.
Conclusivamente, é lícito cogitar que se Rui Barbosa antevisse que quase meio século após a sua morte, ocorrida em 1923, seria o patrono da Cultura brasileira, provavelmente teria caprichado um pouco mais no disciplinamento da matéria na Constituição republicana que carrega a sua digital.
*Humberto Cunha Filho – Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Comentarista do Instituto Observatório do Direito Autoral – IODA. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP).
[1] Conferir: http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/interna.php?ID_S=9
[2]Conferir:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm
[3] Idem
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