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Nestas últimas semanas, um dos temas mais comentados (e polemizados) foi a decisão do Ministério da Justiça e Segurança Pública de determinar a suspensão imediata da exibição do filme “Como se tornar o pior aluno da escola”, uma comédia de 2017 que, da noite para o dia, teve um trecho recortado e compartilhado nas redes sociais.
O fundamento da decisão? A aparente violação da “necessária proteção à criança e ao adolescente consumeristas”. Segundo o Ministério, o trecho que circulou na internet (na qual um personagem pedófilo chantageia dois garotos para que pratiquem ato sexual com ele) apresentaria “conteúdo com tendências de coação sexual ou estupro, ato de pedofilia e situação sexual complexa”, o que, ainda de acordo com o Ministério, embasado em nota técnica do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, fundamentaria a sua retirada de circulação (sob pena, inclusive, de multa diária de R$ 50 mil).
Dentre os dispositivos legais que fundamentaram essa decisão, destacam-se artigos do Código de Defesa do Consumidor e da própria Constituição Federal que, em apertada síntese, tratam da vedação de expor crianças e adolescentes “a toda forma de violência” e da obrigação de “colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Apesar do debate virtual ter se concentrado no teor da obra em si, destacamos aqui uma outra questão (que parece ser crucial no caso): o da legalidade, ou não, do ato de um Ministro de governo de determinar a retirada de circulação de uma obra artística (sim, ela é artística independentemente de gostarmos ou não dela).
O direito à proteção da infância e adolescência reside ao lado de um outro direito fundamental: o da liberdade de expressão artística. E este, segundo o próprio Supremo Tribunal Federal, em emblemático julgado sobre a legalidade das biografias não autorizadas, é um dos pilares do próprio sistema democrático, motivo pelo qual deve ser exercido em sua máxima potência, sendo limitada apenas pela própria Constituição.
Isso não significa, no entanto, que a arte "pode tudo". Toda conduta, artística ou não, pode causar danos a alguém, e é passível de responsabilização, civil ou penal, a depender do caso. A diferença, no entanto, é que essa avaliação é feita exclusivamente no âmbito do processo judicial (e não em decisões governamentais), garantidos os direitos (também fundamentais) à ampla defesa e ao contraditório (ignorados no caso em questão).
Ademais, essa avaliação é necessariamente posterior e nunca prévia. Isto porque é vedado, também pela Constituição Federal, qualquer ato de censura. E sim, censurar é evitar que ideias, pensamentos, opiniões e expressões, artísticas ou não, circulem a fim de evitar "danos maiores" (qualquer semelhança não é mera coincidência).
Na decisão comentada, o Supremo, ao liberar a edição de biografias sem autorização dos biografados, entendeu ser impossível evitar os riscos do exercício da liberdade de expressão artística sem comprometer a própria democracia. Isto porque, ao vetar a circulação de ideias, se veda a própria substância de um regime democrático, fundado na pluralidade e na convivência com o diverso.
Ou seja, no intuito de "defender valores" e "proteger cidadãos", diversos direitos fundamentais são ignorados (liberdade, devido processo legal, ampla defesa, etc.) e se abre a porteira para a censura de conteúdos, sejam eles refinados ou de péssimo gosto.
Por fim, no tocante específico da proteção à criança e ao adolescente, vale ainda lembrar que a legislação já dispõe de um instrumento próprio para evitar o acesso de conteúdo considerado impróprio, que é o da “classificação indicativa”, regulamentado pelo próprio Ministério da Justiça (o mesmo que determinou sumariamente a retirada da obra em questão de circulação). Dias depois, o mesmo Ministério alterou a classificação da obra de 14 para 18 anos (o que poderia ter sido feito desde o início, afinal).
Nenhum direito é absoluto. Todos eles podem e devem ser limitados, mas essa avaliação (e sopesamento) deve ser feita de acordo com as regras legais, no Poder Judiciário, espaço destinado pela própria Constituição Federal para dirimir conflitos. Fora desse cenário, estaremos sim fadados a atos de censura, autoritários, que desrespeitam o direito à liberdade de expressão e prejudicam a própria democracia.
*Cecilia Rabêlo, advogada, mestre em Direito e especialista em Gestão e Políticas Culturais e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
*Carol Bassin, advogada e gestora cultural
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