Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo *
Em julho de 1988, eu era uma criança de sete anos. Xuxa Meneghel estava em ascensão e lançava o seu terceiro álbum, de imenso sucesso, pela Som Livre. Entre as músicas gravadas, estava “Brincar de Índio”, de autoria de Michael Sullivan e Paulo Massadas. A canção foi, no ano seguinte, inclusive, gravada em espanhol, com o título Juguemos a Los Indios, tendo circulado em toda a América Latina, na Europa e nos Estados Unidos.
Em 5 de outubro daquele ano, foi promulgada a atual Constituição Federal, um marco na democracia brasileira. Além de simbolizar a reconstrução do país, após 20 anos de ditadura militar, a Constituição Federal de 1988 garantia, pela primeira vez, o respeito à diversidade cultural e a capacidade civil plena dos sujeitos indígenas, até então tutelados pelo Estado, em condição de incapacidade relativa. Ademais, garantia aos povos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, expresso de forma clara no Artigo. 231.
Um ano antes disso, Ailton Krenak, líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro, havia proferido o comovente discurso, na tribuna da Assembleia Constituinte, em que se vestiu de terno branco e pintou o seu rosto com jenipapo para protestar a favor dos direitos indígenas e contra a supressão dos mesmos, que não foram acolhidos no texto constitucional.
O movimento indígena estava a todo vapor. Na década de 1970, diferentes povos, de diversas origens geográficas, haviam se unido, forjando uma identidade indígena marcada pela violência física e simbólica, quando não pelo genocídio, a fim de reivindicar garantias mínimas de existência. Esse movimento era documentado nos registros jornalísticos e percebido em todo o território nacional.
No início da década de 1980, bem antes da canção interpretada por Xuxa, Baby Consuelo e Pepeu Gomes gravaram “Todo dia era dia de Índio”, criticando a dizimação de indígenas no processo de colonização. Os cantores evocavam o cinismo da data de 19 de abril como um dia singular de conscientização e valorização dos povos indígenas, e recordavam que, antes da chegada dos brancos ao Brasil, essa terra pertencia a mais de três milhões de indígenas. Neste sentido, chamavam a atenção para a visibilidade, e não para o apagamento desses povos.
Mais tarde, em 1991, Mara Maravilha também se apropriaria da efervescência da presença indígena na mídia para lançar “Curumin Iê Iê.” Nesta letra, ainda que também de forma estereotipada, a cantora se colocava na pele indígena e demonstrava orgulho dessa identidade.
A letra de “Brincar de Índio", provavelmente, apresentava uma empatia contemporânea ao que se visualizava do movimento que apitava nas ruas de Brasília e aparecia na mídia. Criança, lembro de ver Raoni, indígena brasileiro da etnia Caiapó, na televisão, com o seu lábio esticado, e me cativar com um líder que parecia ter saído dos meus livros de folclore. Era assim que eu e a maioria dos brasileiros aprendíamos na escola o lugar dos povos indígenas, sujeitos estereotipados, a quem se reservava uma história romântica presa no passado. Apenas em 2008, com a promulgação da Lei 11.645, é que o ensino da história e da cultura indígena passou a ser obrigatório no ensino fundamental e médio.
Xuxa Meneghel chamava as crianças para dançar em círculo, em coreografia, batendo a mão na boca, como a provocar um grito ritual. Nós, então crianças, replicávamos essa dança alegre em casa, brincando de índio, um termo preconceituoso e de reiteração de estereótipo, que não percebe a diversidade das diversas populações indígenas.
A letra chamava a todos para a brincadeira em que o índio não representava perigo, pois não havia mocinho para pegar. O índio agora podia ser um par. Além disso, o índio não mais fazia guerra porque não fazia mais lutas. A letra recordava que um dia o índio já tinha sido dono dessa terra, mas agora fazia barulho e se pintava para dançar. Tal como um bicho, Xuxa incentivava as crianças a não terem medo do índio, que fazia barulho para não ficar sozinho. O índio queria carinho e paz.
A simultaneidade do sucesso da canção da Xuxa e da promulgação da Carta Constitucional parece um anacronismo, mas não surpreende. A letra da Lei, ao contrário de uma gravação de música, é uma conquista formal, mas se materializa com o tempo, em lutas constantes e diárias.
Trinta e cinco anos após a formalização da reorganização constitucional do Estado Democrático de Direito no Brasil, muita gente ainda identifica os mais de 305 povos originários presentes no território nacional, que somam 1,7 milhão de indígenas, com o estereótipo do personagem da letra de Sullivan e Massadas.
Entre avanços e retrocessos, o aniversário da Constituição de 1988 testemunha a mesma dança da Xuxa. O que se discute no Congresso Nacional, em 2023, é um Marco Temporal para as demarcações de terras indígenas. Em outras palavras, grosso modo, nossos parlamentares querem decidir que a redação constitucional atinente aos povos indígenas brasileiros é apenas para inglês ver, reproduzindo a história hegemônica excludente e autoritária do Brasil.
Não é brincadeira.
* Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo, Advogada preventiva nas áreas de Artes, Cultura e Propriedade Intelectual. Servidora Pública no Itamaraty, cedida ao Ministério da Cultura. Pesquisadora em Direitos Culturais. Escritora de literatura. @lenajmm (Instagram)
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